segunda-feira, 7 de julho de 2025

O DESEMBARGADOR E O CÃO

                                                                                                   Dino de Alcântara           

                                                                             CONTO-ANEDOTA

  


  

O cão tentando se aliviar - imagem gerada com auxílio de IA.

Nascimento de Moraes, no seu livro Vencidos e Degenerados, publicado em 1915, dá voz a um dos personagens mais singulares da Literatura Maranhense: Bento. Esse jornalista, como é chamado pelo narrador do romance, afirma, num brilhante artigo sobre a terra de Gonçalves Dias, que o Maranhão ainda vivia (vive para os mais pessimistas) a idade da pré-ciência, em que os métodos científicos ainda não haviam sido introduzidos na “terrinha”. Ao contrário, as mezinhas é que curavam as pessoas ricas e pobres. No lugar de uma explicação científica, uma justificativa caseira, do senso comum. O pião roxo, o benzimento, etc. eram formas de tratamento das doenças maranhenses.


Capa da obra Vencidos e Degenerados, de Nascimento Moraes

Em 2016, uma cena deixaria o ilustre maranhense do começo do Século XX intrigado com o pouco avanço da ciência entre nós. Um carro oficial do Tribunal de Justiça do Maranhão indo da Colares Moreira ao Reino Infantil. Dentro, além do motorista, um senhor bem vestido. Função pública: Desembargador. O carro preto se dirigia à escola para buscar o neto do magistrado. Mas algo interrompeu o caminho do homem da justiça maranhense. Um cachorro vira-lata tentando expelir os restos que o intestino não quis aproveitar de uma comida de dois dias antes. O desembargador deu ordem para o motorista parar o carro, assim que percebeu a atitude do cão. Abriu o vidro esquerdo da porta de trás, observou bem o momento em que o animal fazia o esforço no abdômen. Quando percebeu que era a hora, cruzou, como se fossem dois anzóis, os indicadores. Quanto mais o cachorro se espremia, mas os dedos do desembargador se contraíam. Não eram mais anzóis, mas duas argolas daquelas em que se veem nos guinchos que puxam grandes contêineres no Porto do Itaqui. O bicho, em vão, contraía os músculos do pescoço ao traseiro, numa atitude desesperada, esperando que a natureza ou São Lázaro (protetor dos cães – pelo menos acho que ainda é, agora com essa nova moda pets e não mais donos, mas tutores, pais, etc.) lhe desse a solução do problema. Sim, era um problema: estava constipado.

O desembargador cruzando os dedos - imagem gerada com auxílio de IA

Tentou mais uma vez. Dentro do carro, o desembargador estava com os dedos vermelhos, o rosto em brasa, os olhos esbugalhados, a língua para fora. E o motorista, tentando conter um risinho canalha. O cachorro abriu mais as pernas na esperança de atenuar a dor. Parecia uma anomalia. Deixou o traseiro bem perto do chão. O magistrado já quase com os dedos escapulindo um do outro, deu um jeito de, sem desfazer o nó, arrumar os indicadores de maneira que continuasse com o engate. Apertou mais, pois sentiu que o cão ia conseguir lançar fora os excrementos. O rosto era agora um misto de dor e alegria. Segurou por quase quarenta segundos a respiração. A língua descendo em direção ao queijo. A luta


durou quase dois minutos. Finalmente o cão, derrotado, desistiu. Saiu, cabisbaixo em direção a’O Imparcial. O homem da lei, exultante, por ter conseguido vencer o animal, sem um pingo de ar, fez um gesto que o motorista entendeu que deveria seguir em frente. Estava terminada a luta. O magistrado deu de capote no vira-lata. O carro seguiu seu trajeto. Estacionou em frente à escola. Entrou um garoto de treze, catorze anos. O carro preto foi embora. Na porta do jornal O Imparcial, andando sem rumo, o cão. Alguém lhe atira um pedaço de pastel. Ele apenas olha com desprezo a comida no chão e quem a jogou... Para, olha mais uma vez... e sai, andando devagarinho. 


O cão, sem rumo, observando o pastel jogado - Imagem gerada por IA.



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